quarta-feira, junho 15, 2022

Resenha | O coração é o último a morrer, de Margaret Atwood

Sabe o que é? Compreender Margaret às vezes requer mais do que empatia.

Terminada a leitura de “O coração é o último a morrer”, de Margaret Atwood, fiquei me perguntando “qual o ponto” que ela queria tocar. Porque sempre tem esse “porém” em seus escritos. Eles são feitos para refletirmos sobre alguma coisa. E para chegar aonde quero, vou abandonar “O coração é o último a morrer” e dar uma voltinha pelo "O Conto da aia".


"O coração é o último a morrer", de Margaret Atwood, foi lançado em 2015 nos EUA, publicado no Brasil pela Editora Rocco, em 2022.


Sempre que vejo algum comentário sobre o “O conto da Aia”, um dos livros mais famosos da autora, eu sempre paro para ler/ouvir. É um livro com camadas e mais camadas de significados e sempre capto algum detalhe a mais. Mesmo quando a pessoa diz não ter gostado da leitura. Aliás, às vezes, esse tipo de resenha é o que mais revela a que o livro se propõe.


Margaret Atwood e o feminismo

Margaret Atwood é uma mulher interessada incluir o patriarcado como parte da crítica social (afinal metade da população sofre com isso). Seus livros abordam questões feministas nos são caras, como o nosso direito à liberdade, por exemplo. Uma caminhada difícil vem sendo trilhada há muitos séculos e pouco foi conquistado. O que ela tenta nos mostrar é como essas poucas conquistas são frágeis, sim, mas que a situação pode ser ainda pior, porque não foram vitórias de fato, recebemos algumas migalhas. 

Uma vez, conversando com a Rafa, do @VegasBookBlog, ela fez um comentário sobre as histórias de Margaret Atwood que mudou a minha percepção sobre as obras da autora. Ela disse algo assim: "Margaret escreve sobre coisas que estão acontecendo”. Ou seja, tudo que se lê nos livros dela está acontecendo com alguém em algum lugar do mundo. 

Ao pensas sobre isso… Lembra de “O conto da Aia”, e de "Os Testamentos"? Dá um nervoso pensar que todo aquele universo hostil existe, não dá? Se você disse que não, provavelmente não é mulher, não tem noção do que a maioria delas passam, mesmo em 2022, é tão privilegiada que sente que isso não é com você ou pouco se importa com elas (é misógino que chama né?). 


Por isso acho que se identificar, ou perceber o que Margaret quer dizer, vai além de sentir empatia. Às vezes, a mensagem não é pra quem está lendo, por um motivo ou por outro. E se você não gostou, não entendeu ou achou inverossímil, vale fazer umas pesquisas no google, conversar com outras pessoas, e rever os seus conceitos. E só então, retornar à resenha de "O coração é o último a morrer".


Sinopse e impressões sobre "O Coração é o último a morrer"

É quando volto para “O Coração é o último a morrer”, uma história aparentemente banal. Um casal, Charmaine e Stan, vive nos Estados Unidos, o país está arrasado por uma crise econômica, num cenário de desemprego que desencadeia, para a classe trabalhadora (é claro!), a perda de moradia, da segurança e da dignidade. 

Esse casal então busca no Projeto Positron, uma oferta de emprego, moradia e segurança em troca da sua "liberdade" (qual liberdade?). Eles precisam assinar um termo aceitando viver para sempre num condomínio fechado, onde estarão isolados do mundo. Para quem estava vivendo dentro de um carro, sem banho, lutando para conquistar a próxima refeição, a proposta parece absurda, porque não aceitariam?, e eles ficam tentando entender o que tem por trás disso. Qual é a pegadinha? Mas, mesmo assim, concordam com os termos e se mudam para lá.

A vida é realmente agradável em Consilience, o tal condomínio do projeto, e tudo parece perfeito. Em pouco tempo eles se adaptam e seus problemas passam a ser a cor das cortinas e outras futilidades. Eles chegam a esquecer a vida que tiveram do lado de fora, das pessoas que deixaram para trás e, claro, temem perder as regalias conquistadas.

E se você aí que está lendo essa resenha está ligado no que acontece no mundo, já sabe onde está o plot, qual o problema e porque esse livro está classificado como uma “Distopia”. É um futuro muito próximo, embora tenham robôs inteligentes. Mas, será que se trata de um futuro?



O marcador do livro traz a pergunta “Quanto vale a liberdade?” e a resposta não é fácil, mas, ao ler esse livro e pensar sobre essa questão levando em consideração o mundo a nossa volta… Algumas reflexões são provocadas. Que liberdade?

Pesquisa no Google “população de rua nos estados unidos”, no Brasil, em São Paulo, na tua cidade, caso não seja paulista… Estima-se que a população em  situação de rua em Porto Alegre seja superior a 3 mil. 

O desemprego no Brasil já atinge mais de 11 milhões de pessoas, sem levar em consideração o subemprego e as pessoas que desistiram de procurar trabalho. 75 milhões de brasileiros estão vivendo com meio salário mínimo, ou menos, e buscando doações para não passar fome. Pessoas que estão a ponto de perderem suas moradias e irem viver nas ruas.

Volta e meia há denúncias dessas pessoas alegando violência por parte do poder público para retirá-las da nossa vista, da vista de quem mora em bairros “nobres”. Enquanto escrevo este post, tem uma ocupação em Palhoça - SC, sendo despejada, saiba mais sobre a ocupação Marigella aqui

Ou seja, os protagonistas de “O coração é o último a morrer” não só existem, como estão entre nós, circulando pelas ruas, só o que falta é um burguês safado achar um jeito ainda melhor de lucrar com essa mão de obra abundante, tirando essa "gente suja" das ruas e assim, agradando a todos. 


Percebem a ironia presente nessa obra? 

Falar em liberdade no sistema capitalista onde a maior parte das pessoas é classe trabalhadora e não tem liberdade alguma. Lançar uma “distopia” que relata fatos de um futuro próximo que, na verdade, já faz parte do presente? É com esse olhar que se deve “ler” esse livro e pensar sobre tudo que acontece na história, cada detalhe dela.

O que somos nós, dentro das nossas casas, nesse inverno reclamando do frio? O que somos nós, classe trabalhadora, se não escravos deste sistema que nos aprisiona, que nos faz vender nossa força de trabalho por qualquer centavo, que nos faz aceitar todas as suas contradições e torcer todos os dias para não se tornar aquele ser estranho lá da rua, o desempregado, o pobre coitado? Como é que vamos julgar Charmaine e Stan, ou não ironizar essa ideia de Margaret Atwood de que temos escolha? Quem somos nós?

Mas a musa não para por aí. Ela também aproveita a sua “pseudo-distopia” para nos falar sobre relacionamentos, machismo, masculinidade tóxica e ainda nos dá, para nós mulheres, uma personagem FODA! Que faz o macho de trouxa, que domina quem acha que está dominando, cria uma situação extremamente desconfortável para o macho. Eu só percebi porque sou mulher e vejo isso acontecer TODO SANTO DIA. Sabe? Margaret Atwood é perfeita.

Na contra-capa há alguns comentários sobre a "moral" da história estar relacionada a "pessoas boas presas, pessoas más, livres", mas, pra mim, essa história vai muito além disso.


Para concluir...

A leitura foi boa, o impacto foi forte e ainda estou refletindo sobre o final. O qual parece simplório demais e um pouco bobo à primeira vista. Mas, Margaret guarda para as últimas linhas o plot final, para nos incomodar. Nem final sórdido, nem agri-doce. Volta e lê tudo de novo, acho que você ainda não entendeu! É o que ela parece nos dizer… Perfeita, até a última linha!

Enfim… Se nada do que disse aqui fez sentido para você, se ainda acha que não vale a pena ler a musa, "sorte a sua"! Leia mesmo assim, como uma distopia futurista, com uma sociedade doente, robôs, Elvis e Merlins.



segunda-feira, junho 06, 2022

Resenha | Alamut, de Vladimir Bartol

 Sabe o que é? Você só sabe que “assassino” é assassino, por causa de Alamut. Na verdade não é bem isso, mas calma que eu explico, ou tento explicar!




Resenha | Alamut, de Vladimir Bartol

“Alamut”, de Vladimir Bartol, é a versão do autor para a história de Hasan ibn Sabbah, conhecido como “o velho da montanha”. Esse cara criou a “ordem dos assassinos” no século XI. Uma divisão de elite, e suicida, do exército que ele forma para proteger os Ismaelitas e claro, ampliar a influência dessa “divisão” religiosa entre os muçulmanos xiitas.

Eu poderia parar essa resenha por aqui e isso já seria motivo de sobra pra alguém ler o livro. Essa “ordem dos assassinos” foi o que deu origem ao que hoje conhecemos como "assassinos", a origem da palavra veio do haxxīxīn 'consumidor de haxixe' < persa hassassin 'designação da seita do Norte do Irã que, nas Cruzadas, consumia a erva, antes de lutar'. 

E aqui a gente entra numa outra questão importante, que é o fato de essa galera ter sido formada ali em meio às perturbações e conflitos gerados pelas cruzadas. No livro acompanhamos apenas a ascensão dos Ismaelitas por meio do “velho” que se dizia indicado por Alá, o qual teria lhe entregado as chaves do paraíso.

Com esse “poder”, ele é capaz de decidir quem levar (homens vivos ou mortos) para os jardins paradisíacos e as suas Huris. O que significava acesso a meninas virgens dispostas a tudo, comida e bebida liberada.

Essa era a moeda de troca utilizada por Hasan ibn Sabbah com sua ordem de assassinos. Eles eram os mais puros da seita e por isso eram proibidos de casar ou ter relações afetivas. Isso viria ao cumprirem as suas missões, quando seriam levados ao paraíso. 

A história de Vladimir Bartol procura mostrar como o cara arquitetou todo o seu plano, desde a tomada de Alamute (uma fortaleza estratégica), conquistou seguidores com a fanfic sobre o paraíso e ampliou a sua área de influência onde hoje é o Irã, abalando as relações de poder daquela região. Parte dessas conquistas nos chega nos dias atuais com Ra's Al Ghul, do Batman (que embora não seja sobre o velho da montanha, tem muitas semelhanças: um homem poderoso na montanha com uma liga de assassinos) e “Assassin’s Creed Origins”, que foi buscar nessa história a referência para o jogo.



Sobre a experiência de leitura de "Alamut"


A Editora Morro Branco fez algo para o que muitos puristas poderiam torcer o nariz: ela modernizou o texto. Então, se você viu lá na capa que o livro é de 1939, retratando uma história que se passa no Irã do século XI, e pensou “Não é pra mim”, talvez essa informação te faça mudar de ideia. A leitura é muito fluida, a ponto até de esquecermos onde e quando aqueles fatos ocorreram.

Aqui eu deixo a minha crítica. O autor não ambienta muito bem a história, e essa atualização, tirou a história do contexto pra mim. Eu preferiria um texto mais classudo, diferença nas vozes dos personagens que têm origens diferentes e etc. Mas, fica mais fácil de ler e não foi uma experiência ruim, longe disso.

Em determinado momento da história, um professor começa a aula e a aluna mais nova fica se segurando para não rir. A gente fica sem entender até que pela conversa com as colegas, deduz-se que ele fala esquisito. Esse é o tipo de marca que não deveria ter se perdido, acredito eu.

Há ainda uma variação estranha na narrativa, às vezes parece realismo, absurdo, gritante, em outras parece que estamos lendo um conto de fadas. As motivações do “velho da montanha” são expressadas, para nós de 2022, de um modo meio infantil em algumas passagens. Lembra do pica-pau e seu delírio com dinheiro, mulheres, iates? Para mim, foi algo assim. 

Acho que faltou desenvolver melhor a formação dos assassinos, assim como problematizar a história paralela que se passa nos jardins. Outra questão que me incomodou um pouco foi a pressa em terminar a história. No início, os personagens e as situações nos são apresentados aos poucos, com uma riqueza de detalhes quase desnecessária. Depois, quando precisamos entender e queremos ver mais de como as coisas estão se desenrolando, ele apenas as cita, sendo bem superficial. 



E sim, precisamos problematizar

Alamut é uma história do tempo das cruzadas, que se passa no universo muçulmano e, mesmo tendo sido escrito tempos depois, em 1939, é claro que está cheio de passagens machistas. Incômodas, mas muito fáceis de entender. Apesar disso, senti falta de um texto de apoio, para que um jovem ao ler a obra, tenha uma dimensão desse e de outros problemas que o livro traz por ser datado.

Embora tenha as minhas ressalvas, recomendo muito esse livro, pois:

  • Ele nos tira do lugar comum, eurocentrista ou estadunidense.
  • Traz uma visão muito interessante sobre os muçulmanos, o que pode ajudar a desmistificar alguns estereótipos e preconceitos.
  • Tem uma crítica implícita sobre como pessoas numa posição de liderança costumam agir e pensar.
  • Faz uma crítica explícita ao cinismo de líderes que usam a fé alheia para manipular pessoas.


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Vale lembrar que Vladimir Bartol era branco, europeu, formado na Sorbonne, e tem, portanto, a visão de um cara privilegiado sobre essa história. Apesar disso, o período em que o livro foi escrito indica a crítica aos regimes totalitaristas e fascistas que estavam surgindo na época dele. 

Temos aí mais um ponto interessante para ler essa obra: o mundo estava uma loucura, e ele “preocupado” em contar uma história de outro tempo, em que tudo deu errado (para muita gente, leia o livro e entenda), por menosprezar esse “tipo” de liderança. Ele foi cirúrgico nesse paralelismo e entender esse contexto é importante para dar o devido valor à obra.

É por essa e por outras que recomendo a leitura desse que deveria estar lado a lado com clássicos como 1984, de George Orwell, por exemplo.


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